Opinião: Genocídio da Juventude Negra

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”Os sociólogos preferem ser imparciais, e dizem ser financeiro nosso dilema, mas se analisarmos bem mais você descobre que preto e branco pobre se parecem mais não são iguais” (Racionais MC’s)

Por: Djneew Dê Loná
Arte: FSP

No dia 18 de dezembro de 2014, aconteceu uma grande manifestação na região central de São Paulo, onde a pauta em questão era o combate ao chamado genocídio da juventude negra, não foi surpreendente que o maior veículo de comunicação do país não separou nem 30 segundos de seu principal telejornal diário para destacar esse ocorrido. Isso se deve a alguns fatores, um deles foi o de que não houve “brecha” para criminalizar a manisfestação, não quebraram agencias bancárias, não danificaram agências de automóveis e nem outras empresas privadas, ou seja, não machucaram os filhotes da emissora.

Outro motivo foi pura e simplesmente o boicote jornalístico: a negação de um fato baseando em números e sangue, assim como nega boa parte da população (até mesmo pessoas de dentro da cultura hip hop) acredita que não existe genocídio da população negra e que o problema é social e não racial.

Ainda ouvimos velhas frases impregnadas no cotidiano, as mais famosas e classicas “também, o que ele estava fazendo aquela hora na rua?”, e “se morreu é porque devia”. Então, realmente, muita gente anda devendo, devendo explicação. Segundo numeros do Mapa da Violência entre 2002 e 2011 o numero de jovens negros assassinados subiu de 79,9 % para 168,6 %. O de brancos caiu de 36,7% para 22,8%.

Existem organizações e movimentos que trabalham com a pauta do Genocídio da Juventude Negra  de diversas formas, porém,  a ”inspiração” para manifestação do dia citado acima surgiu dos atuais acontecimentos ocorridos nos EUA, onde milhares de cidades estão fervendo com passeatas e manifestações por conta da absolvição do policial que matou um jovem negro com 5 tiros de ”advertência”, fato que foi classificado pela revista Veja como uma ”farsa esquerdista”.

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Lá, como aqui, o plano segue, não é de hoje. Há alguns séculos, o plano de extermínio dos negros no Brasil foi a guerra contra o Paraguai, onde milhares de negros ganharam sua alforria para lutar na linha de frente da batalha, plano esse feito também pelos nossos vizinhos argentinos. Como a destruição física não teve suficiente êxito no Brasil, a ideia era embranquecer para esquecer, empreitada que também não teve sucesso pleno, mas termos como pardo, mestiço, mulato, moreno(o) claro, moreno ainda são disseminados.

Junte-se a isso a teoria do país onde não há guerra e todas as etnias vivem em harmonia num paraíso miscigenado, um lugar com futebol e samba. Mas não para por aí, não contabilizamos ainda a expulsão da população negra que morava em regiões centrais das grandes metrópoles. Não contabilizamos as mortes da população negra durante a ditadura civil militar ocorrida no Brasil e, ”se eu for falar de tristeza meu tempo nem dá”, mas dizem por aí que o problema é social. O plano continua. Hoje a desculpa é ”ele resistiu a prisão”, os movimentos culturais, o hip hop, a musica rap em especial teve papel fundamental na denúncia deste contexto. Se ainda não temos a tomada de consciência e a organização proporcionalmente comparada aos norte americanos, sem as denúncias e reflexões dentro do hip hop e dos movimentos sociais de anos anteriores teríamos ainda menos.

Esta situação começa a se acentuar a partir do momento em que a pessoa se assume como homem negro ou mulher negra, e não como ”moreninho claro” ou ”moreninha escura”, a partir do momento que alguem se assume dentro de determinado grupo, o que ocorre com outra pessoa desse grupo o atinge e causa indignação, talvez isso explique exatamente porque tanta indignação ocorre nos EUA com a morte de UM e aqui pela morte de milhares não acontece o mesmo em proporçoes semelhantes. Quantas vezes, preenchendo fichas de matrícula junto com os pais em uma escola estadual em São Paulo, perguntei qual a cor da criança ou do adolescente – requisito obrigatório no preenchimento na ficha de matrícula – por alto, quem não entrasse na escola e só olhasse as fichas de matriculas pensaria ser uma escola na Dinamarca, Suécia ou de outro país do leste europeu. A maioria se dizia branca, outra parte se dizia parda, alguns pais mesmo tendo a cor da criança evidente preferia dizer ” ele é meio moreno claro”.

O processo não é só de reconstrução de nossa história, mas o de desconstrução dos paradigmas e estereótipos. Apesar do hip hop não estar na chamada ”era de ouro” dos anos 90,  ainda é possível o diálogo com a juventude. Com a questão de identidade assumida talvez nos indignaremos mais, e não vamos achar natural a morte de jovens negras e negros.

O genocídio da juventude negra não é teoria acadêmica e muito menos marketing de ONGs, é assunto real, os numeros provam, os fatos provam. Na Argentina o numero de afrodescentendes caiu de 30% para 2% em questão de décadas, se continuarmos achando normal e coincidência que os jovens negras e negros estão morrendo,  não estaremos tão distante da mesma realidade em nosso país.

Saiu na Folha de S.Paulo de hoje:
Jovem negro corre 5 vezes o risco do branco de ser morto no Nordeste
Morte de jovens negros cresce 21% em 5 anos no país

O carisma de Karol Conka

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Não parar para entender esse fenômeno… É se anular historicamente.

Por Fábio Emecê
Fotos: Divulgação

Fico cheio de ideias quando percebo o quanto estamos fazendo as coisas acontecerem e não sabemos ainda a força e o tamanho disso. E quando digo que estamos fazendo, digo isso enquanto povo preto mesmo, não é um esforço individual meu ou de um chegado só, é algo com mais potência.

Na trama, estava imaginando o porquê de líderes como Zumbi, Luíza Mahin, Rainha Nzinga e João Cândido terem sido seguidos e modificado o status quo num momento histórico específico. Antes das ideias por si só, acredito, existia o carisma.

Carisma é algo que alguém tem e essa pessoa é estimada, ouvida, desperta o interesse, sendo simpática e contagiante. Algumas pessoas têm e quando elas cismam em desafiar o status quo, ferrou. E quando essa pessoa cisma em ser artista?

Bom, aí que eu chego na Karol Conká e seu Batuque Freak. Já conhecia a Karol numa época de tentar descobrir mcs femininas ao longo do brasilzão e gostava bastante. Ela vem com o Batuque Freak, uma rápida audição, uma certa estranheza e tá, legal!
Por que Batuque Freak, né? Reconhecer elementos de música popular por ali já é um indício. Maracutu e jongo por exemplo. Reconhecer as batidas fortes e marcantes da música eletrônica contemporânea: outro indício marcante. E talvez um elemento primordial nisso tudo. Uma mulher preta que entende de onde veio e pra onde quer ir.

Aliança de ancestralidade com contemporaneidade. Sankofa traduzindo-se numa proposta musical aí nos nossos olhos. Potência, e bota potência nisso. Ainda sim na desconfiança usual de sempre, estava faltando uma identificação, pelo menos pra mim, que poderia caracteriza-la como uma artista preta de fato, sem rodeios.

O meu referendo nunca vai ser importante de fato, porque simplesmente ela não precisa disso, mas prestem atenção, estava assistindo uma série de vídeos que ela lançou em turnê recente na Europa e um fato me chamou atenção.

Lugares em que se tem uma população preta marcante, como Londres e Paris, por exemplo, os pretos foram em peso, e não foram radicados brasileiros, foram pretos ingleses, franceses, senegaleses, ganeses, nigerianos, enfim, a Karol conectava-se com os pretos da diáspora. Pow.

Tratei de viciar umas amigas em Karol Conká e fomos pra Madureira – Rio de Janeiro assistir ao show dela. Madureira, pra quem não sabe, só tem o Império Serrano e a Portela no seu território, além do tradicional Baile Charme, ou seja, mais preto, impossível.

Um espaço lotado majoritariamente de pretos, com suas complexidades, sejam elas financeiras ou afetivas ali reverenciando uma mulher preta magnética, que colocou todo mundo pra dançar, celebrar, delirar e até por algum momento, respeitar uns e outros.
Karol Conká é uma artista que o Hip Hop moldou, o rap sustentou, só que ela entendeu o quanto vale ser preta nesse contexto, o quanto é carismática e que se for pra deixar algum legado, que tenhamos tempo para nos amar, nos beijar e nos amassar, sendo esses atos, atos revolucionários.

Porque na complexa trama para nos exterminar, acabar com a afetividade e com a aceitação de nossa particularidade, sempre foi algo em voga. A Karol Conká vem e diz que nós pret@s podemos sim nos amar e nos aceitar do jeito que somos.
Sem manuais, apenas com o carisma e o impulso contemporâneo. Não parar para entender esse fenômeno, é se anular historicamente. A Karol Conká é uma artista de nosso povo. É artista de nosso tempo, e o melhor, ela não precisa se explicar, a arte dela se prolifera e os pret@s sabem, e como sabem…

Mixtape: Hip Hop Loves Jazz Vol.5

Escute e faça o download da mixtape “Hip Hop Loves Jazz #5, Special Japan“, produzida e mixada pelo canadense BENITO TURNTABLE. No set list, sons de Nujabes, Nomak, DJ Mitsu, DJ Muro, DJ Krush e muito mais. Só dar o play:

Karol de Souza: “faço parte da retomada”

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Dona de um estilo arrojado e cheia de personalidade, Karol de Souza marca posição na linha de frente do rap brasileiro. Após uma série de apresentações neste ano, uma delas na turnê de 25 anos dos Racionais MC’s, a MC deu uma pausa em seus trabalhos para conversar com o Bocada Forte. Machismo, religião e superficialidade dos artistas nas redes sociais foram os temas do bate-papo. É claro que não faltou rap nas ideias. Leia abaixo.

Bocada Forte: Pelo que podemos ver, o ano de 2014 está sendo movimentado no rap. Você acredita que também conseguiu colher bons frutos com seu trabalho? Como avalia sua atual fase?
Karol de Souza: Sim, acredito! Foi sem dúvida alguma o melhor ano da minha carreira.
Eu acho que muita gente espera pelos meus próximos trabalhos, e o fato de 2014 ter sido tão proveitoso pra mim confirma isso. Eu me sinto de fato uma MC estabilizada e estabelecida, esse ano foi primordial pra que eu sentisse isso.

Bocada Forte: Por falar em próximos trabalhos, como estão seus projetos? Tem mixtape, single, clipe, parcerias com outros artistas? Como será a Karol de 2015?
Karol de Souza: Tem tudo isso, e mais um pouco. Pretendo lançar um EP, aos cuidados do Nave Beatz, mas com colaboração de outros produtores amigos, mas acho que lançaremos um clipe antes, de uma música que está quase terminada.

Estou ainda escolhendo os convidados pra esse trampo, que está sendo desenvolvido com mais maturidade, já que tenho mais de 4 anos de experiência. Posso adiantar as participações de Chayco, da Família Madá, e Rico Dalasam.

Bocada Forte: Numa entrevista passada, você disse que o flow é uma espécie de identidade do MC. Como faz para desenvolver suas rimas? Qual sua maior inspiração no mundo do rap?
Karol de Souza: Todas as situações, vivências e exemplos acabam virando um verso. As minhas e as das pessoas que me rodeiam. No meu caso, quando isso vai pro papel, o meu flow é o diferencial na construção da música. É através dessa forma tão exclusiva de cantar que eu tento me diferenciar e dar uma autenticidade ao som.

Já minhas inspirações são poucas no rap. Tem uns MCs que eu gosto tanto, que até me cuido pra não enjoar, de tanto dar repeat. Fora disso, minha mãe, avó e irmão são as maiores inspirações. É tudo pensado neles antes.

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Bocada Forte: O que você acha das rappers estrangeiras que estão em destaque, como Iggy Azalea e Nick Minaj?
Karol de Souza: Acho legal. A Nick Minaj é incrível, tem conteúdo lírico, uma voz boa, e sabe jogar o jogo. Ela poderia ser facilmente a melhor no underground, mas diversificou, se moldou, fez porque quis. É um mercado completamente diferente do nosso. Lá funciona. A Iggy é boa MC, só.

Bocada Forte: Você recentemente fez um comentário num post de um amigo em comum no Facebook. Você questionou o jeito que as mulheres negras são tratadas nos videoclipes. Fale mais sobre isso. Como começar a mudar ou mostrar alternativas que reforcem o combate ao machismo no rap?
Karol de Souza: Putz, quando eu falo disso, não sou compreendida. O machismo é brasileiro, não desiste nunca. Eu não o sinto tanto, por uma questão de postura e até de inteligência da minha parte. Não levanto bandeiras, inclusive vejo que muitas mulheres no rap/hip hop exageram no vitimismo quando o assunto é esse. Quero sim, ver mulheres no topo, bem sucedidas e realizadas dentro e fora do rap, mas principalmente por merecimento do seu trabalho, e não por gênero apenas. É um assunto delicado, que tem que ser discutido, em prol de um País mais justo.

Bocada Forte: Nesta volta do Bocada Forte, dos quase 300 posts que fizemos, entre matérias, lançamentos, singles, clipes, entrevistas, creio que nem 20 são de trabalhos de mulheres no rap. Na literatura já foi constatado que as obras das mulheres são pouco lidas, resenhadas, discutidas, repercutidas. Você acha que, no caso dos blogs de rap, existe uma miopia dos blogueiros que os impede de enxergar o trabalho das minas?
Karol de Souza: Acho que no Rap são uns 20 MCs homens pra cada mulher MC . Isso explica uma parte. Talvez essa miopia exista sim, e isso justifique outra parte. Conheço MCs mulheres com quase 10, 15 anos de carreira mas com um resultado de realizações quase nulo pros padrões atuais, por N motivos: engravidaram, não tinham referências femininas, falta de dinheiro, falta de comprometimento, entre outras coisas, e isso explica outra fatia destes dados.

Sinceramente, penso e acredito que eu e tantas cantoras contemporâneas somos a mudança viva. Mesmo assim esse número é uma pena.

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Bocada Forte: Com tantos trabalhos mostrando estilos diferentes do rap daqui e o olhar que a mídia voltou a dar ao rap, tudo isso mostra uma fase positiva, muitos grupos dos 90 estão voltando a lançar trabalhos. Você acha que o trabalho dos mais novos nestes últimos dez anos sustentou uma cena que estava enfraquecida? Você acha que faz parte de uma geração da retomada?
Karol de Souza: Tenho certeza! É quase um círculo vicioso do bem. MCs das antigas foram base e referências pros MCs de uma nova geração – essa dos últimos 7 anos – que se estruturou, pra poder receber muitos dos grupos dos anos 90 e início dos anos 2000.

Sou certamente um componente dessa retomada, e estou trabalhando pra ter tudo de bom que a música rap pode dar. Fico feliz em ver caras como o Zé Brown e o Eli Efi, que tive o prazer de conhecer e dividir palco recentemente, voltarem a cena ainda tão enérgicos e produtivos.

Bocada Forte: Você acha que existe um maior entendimento sobre como manter a essência do hip hop e se relacionar com o mercado? Acha que os da sua geração lidaram com isso de uma melhor maneira?
Karol de Souza: Minha geração é muito vasta. Vai de meninos de menos de 20 anos, como o Primeiramente, tão politizados e modernos ao mesmo tempo, até caras que estão nas TVs e nos grandes sites, mas totalmente modulados e com apenas um resquício de essência de hip hop. Encontrar um equilíbrio saudável é o propósito da maioria de nós.

Eu mesma sofro por dispensar ser o padrão de beleza atual, ou modificar minha sonoridade, pra vender mais, aparecer. Enfim, cada um lida como consegue ou como decide.

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Bocada Forte: Como você lida com a nossa era de explosão da informação? Vejo artistas lançando singles, EPs, clipes sem parar. Parece que precisam estar sempre em evidencia, parece que temem ser esquecidos ou atropelados por outros artistas ou tendências. Pelo que vejo, você segue na contramão, seus trabalhos são mais cadenciados. Fale sobre isso.
Karol de Souza: Essa necessidade de ficar na crista da onda me irrita. Não funciona! Fazer um som é fácil, em uma tarde você faz. Fazer música de qualidade é outra coisa, envolve tempo, sentimento, dedicação, verdade. Eu, como não sou novinha no rap e também não sou dinossauro, fico no meio do caminho. Meu estilo é mais concentrado. Tenho 12 músicas lançadas em menos de 5 anos. Vejo gente lançando 12 por ano, enchendo linguiça.

São os resultados das facilidades de hoje, já que todos acham que são produtores ou MCs por terem um PC com o Fruity Loops instalado. Mas, na peneira, a maioria cai.

Bocada Forte: Você acredita que existe uma estatística da vaidade que envolve likes, views, que podem ser reais ou comprados, mas que não refletem muito na vida real do artista, não cria público, não leva pessoas e fãs aos shows? Sabendo que não se pode abandonar as redes sociais, como você lida com essas estatítiscas, elas influenciam seu jeito de trabalhar?
Karol de Souza: Super acredito! É gritante! Não costumo me apegar aos likes de forma nociva e desesperada – no caso de quem compra. Acho que é você mentindo pra você mesmo! Agora, é claro que eu gosto de muitos likes nas minhas fotos no Instagram, meu app preferido, pois curto fotografia. Eu sempre respondo os comentários, tenho fama de humilde por causa disso. Mas isso é por que quase ninguém responde os admiradores nas mídias sociais, e eu, de novo, sigo na contramão. Prefiro amigos do que fãs.

Bocada Forte: Qual sua relação com a religião, tem alguma? O quanto a religião pode ajudar e o quanto a religião pode atrapalhar as relações humanas?
Karol de Souza: Nossa, essa é a mais diferente das perguntas. Então, eu sou católica, mas vivenciei a Umbanda na infância. Sou sincrética, como tantas pessoas que eu conheço. Exercito o budismo quase que diariamente por Daimoku, além de estar melhorando aos poucos minha alimentação por questões espirituais.

As religiões costumam melhorar a vida das pessoas, mas, na dosagem errada, estraga! Prefiro o espiritual ao religioso. Mas sou uma guria de muita fé!

Fotos: Luan Batista, Estúdio Urbano

Opinião: os Racionais ficaram lacônicos

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“Cores e Valores”: os Racionais ficaram lacônicos
Por Felipe Schmidt

Enquanto caminhava para dominar toda a Grécia antiga, o rei Filipe II da Macedônia, irritado com a negativa de Esparta em se render, enviou uma mensagem de aviso aos rivais: – Se eu vencer esta guerra, eu vou destruir suas fazendas, massacrar seu povo e destruir a cidade.

A resposta espartana foi simples: – Se.

Milhares de anos depois, no segundo álbum do Wu-Tang Clan, Gary Grice, também conhecido como GZA ou The Genius, resumiu seu estilo: – Seja breve: metade mais curto, duplamente mais forte.

O que os espartanos e GZA têm em comum com “Cores e Valores”, o novo álbum dos Racionais? Tudo. Ambos são a favor da concisão, do resumo, de ir direto ao ponto. Se o novo disco do grupo de rap mais importante do Brasil pudesse ser resumido em uma palavra, seria uma que faz referência à Lacônia, região onde ficava Esparta: lacônico.

Foram 12 anos de espera para 35 minutos de música, rimas aparentemente desconectadas umas das outras, temas reciclados, assuntos abordados por outro ângulo… Todo o estranhamento que possa haver com “Cores e Valores”, no fim, se resume a uma mudança decisiva. Os Racionais abandonaram a pregação; agora, são mais sutis no discurso, e isso exige maior atenção do ouvinte.

Não espere linhas que chamam atenção de primeira, como em “Capítulo 4, Versículo 3” ou “Negro Drama”; bem longe está o papo intimista e positivo de “A Vida é Desafio”. Lembra da poesia misteriosa do início de “Jesus Chorou”? É por este caminho que os Racionais enveredaram.

Por isso, em vez de músicas de sete minutos, aparecem faixas com alguns segundos. Edi Rock e, especialmente, Mano Brown condensaram suas ideias. Estão mais poéticos, capazes de passar uma mensagem com alguns poucos versos. Tecnicamente, evoluíram demais: basta ver a narração cinematográfica de “A Praça” ou o malabarismo de “Quanto Vale o Show?”.

Se você persistir e prestar atenção, vai ver que os Racionais, por um lado, nem mudaram tanto. Relatos sobre crime e necessidade de dinheiro continuam ali, prontos para serem decodificados. Preconceito e condições sociais permeiam quase todas as faixas, são inerentes ao mundo descrito pelos Racionais. Mas a nostalgia reserva os melhores momentos do disco: Edi Rock recria o início de sua carreira em “O Mal e o Bem”, enquanto “Quanto Vale o Show?” é espetacular, uma prequel contando a história do jovem Pedro Paulo antes de se tornar o super-herói Mano Brown.

Ironia das ironias: enquanto o discurso foi condensado, a produção seguiu caminho inverso. As batidas secas e simples dão lugar a instrumentais eletrônicos, detalhistas, pesados. Tão diferentes das letras que as complementam perfeitamente. Vai ser estranho ouvir os Racionais nestas faixas nas primeiras audições, mas, acredite, você vai se acostumar. Até porque, como sempre acontece com o grupo, é bem provável que a estética que trouxeram desta vez influencie o rap nacional nos próximos anos. Isso se o quarteto não resolver mudar as peças do jogo de novo.

– Se.

Racionais MCs, 25 anos de rap e construção de identidades

 

Já imaginou como era a economia nas décadas de 70 e 80? Já pensou no que significava ser preto e morador da periferia nessa época? Como o poder público lidava com o povo pobre? Como o povo pobre desenvolveu estratégias de sobrevivência e enfrentou o descaso dos governantes?

A trajetória dos Racionais MCs, grupo que celebra 25 anos de carreira na música popular brasileira, é uma mescla de experiências que, de certa forma, ajudaram a criar um manual de conduta para os jovens periféricos dos anos 1990. Não que este manual foi algo construído de maneira planejada, mesmo assim, os integrantes do grupo sabem que são referência no rap brasileiro.

Da ponte que liga passado e presente existem demarcações geográficas, psicológicas, sociais, raciais e econômicas que moldaram a história de protagonistas e coadjuvantes dos subúrbios do país, mas os Racionais MCs não cantam apenas a vida do outro, sem perder a principal característica do rap, suas vidas estão em cada verso, compasso e batida. Suas músicas contém amostras em alta resolução do quadro social que ferve e está em transformação a cada dia.

Do primeiro disco aos mais recentes trabalhos, muita história é contada por quem veio de baixo, mas agora está no topo. Será que algo mudou?

A letra do samba “Gente da gente”, do grupo Negritude Júnior, aborda a importância dos Racionais para o povo menos favorecido: Essa gente já sofre demais /são tratados como animais/ e só querem um pouquinho de paz/ e precisam ouvir Racionais.

Muita gente cresceu curtindo rap e aprendendo com KL Jay, Mano Brown, Ice Blue e Edi Rock. Temos em diferentes área do mercado de trabalho uma geração que ouviu e ainda ouve os Racionais MCs. Eles sabem bem o que isso significa. Não importa se, às vezes, durante depoimentos e discursos, parece que os rappers esqueceram o que ensinaram. Nós não esquecemos o que aprendemos. Agradecemos.

Em meio aos novos paradigmas do hip hop, cada artista tem o direito garantido de escolher seu caminho, mas uma coisa não pode passar desapercebida: o grupo comemora 25 anos de legitimidade calcados nas posturas e discursos que revolucionaram os guetos do país. Tudo está registrado e bem rimado.

Especial Racionais MCs

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Os Racionais MCs são da segunda geração do rap paulistano, depois de Black Juniors, Thaide & DJ Hum, O Credo, MC Jack, Código 13, Ndee Naldinho, Pepeu, e até da banda Gueto, que fazia uma mescla de rap, rock e samba.

O primeiro registro fonográfico do quarteto mais importante da cena rap brasileira foi a participação na coletânea “Consciência Black” (Zimbabwe, 1988/89). As canções “Tempos Difíceis”, feita por Edi Rock e Kl Jay, e “Pânico na Zona Sul”, com Brown e Ice Blue, foram os maiores destaques desta compilação que também trazia Sharyline, Frank Frank, entre outros.

Nos 25 anos de carreira dos RACIONAIS MCS, o mais importante grupo do rap brasileiro, o Bocada Forte preparou matérias especiais sobre seus mais recentes trabalhos e reportagens retiradas do nosso acervo.

Clique nos links abaixo e boa leitura:

Racionais, 25 Anos de rap e construção de identidades
Opinião: os Racionais ficaram lacônicos, por Felipe Schmidt
Racionais: Quanto Vale o Show?
Mano Brown e a Roda Viva – Parte 1
Mano Bronwn e a Roda Viva – Parte 2 

Racionais MCs: Quanto Vale o Show?

IMGRecortes e ambientes dos anos 1980 que podem ter moldado a personalidade de cada um dos Racionais MC’s

Só os integrantes dos Racionais MCs podem dizer como eram suas vidas nos anos 1980, mas a música “Quanto vale o show?” fornece alguns registros da juventude de Mano Brown que também representam o perfil e a caminhada de muitos jovens da época. Da vestimenta citada na letra, passando pelo que era hit musical e chegando ao refrão com trechos da fala do apresentador e empresário Silvio Santos – sucesso aos domingos com um programa que inspirou o nome do som dos Racionais – o rap de Brown é a periferia dos 80 revisitada.

Pesquisando sobre os bairros de São Paulo em jornais da época, notei dois extremos. De um lado, a maior parte das publicações sobre bairros de classe média-alta retratam a prosperidade econômica dos locais, a tranquilidade e a história ligada aos integrantes de uma elite colonial. Muitas reportagens têm depoimentos de políticos e artistas famosos, todos falando da beleza de bairros como Jardim Europa, Moema, entre outros.

O lado que cobre as periferias da capital mostra comunidades em construção, lugares onde falta saúde, saneamento básico, transporte, escolas, segurança. Parte das reportagens possui um tom carregado de preocupação com o crescimento desordenado da cidade. É notório o medo, o preconceito, a tentativa de denunciar, mas, sobretudo moldar e controlar a população da periferia, povo que enfrenta as dificuldades, desenvolve estratégias de sobrevivência e, contra a vontade de muitos, permanece em São Paulo.

Imagine como os membros da classe A/B reagiam ao ler nos jornais notícias sobre a violência que crescia no bairro de São Mateus, na zona leste, ou sobre a precariedade que se espalhava pelos bairros da área cortada pela Estrada de Parelheiros, na zona sul. No olhar da elite, a criminalização da pobreza era justificada, temida. Estava tudo ali nas páginas dos periódicos.

Nos jornais
Num primeiro momento, elite, administração pública e seu braço armado, querem erradicar a periferia e tudo o que ela representa. Já nos anos 1960 e 1970, para conter o crescimento das favelas, o poder público marca os barracos, coloca a polícia para cercar a comunidade, fornece passagens para os migrantes voltarem para suas regiões de origem. O crescimento da periferia nos 80 prova que nada adiantou.

Quando notam que não há jeito, decidem que é melhor conter tudo o que temem no espaço que está sendo construído nas bordas da cidade. Afinal, a periferia está muito distante da realidade das classes mais altas, sua grande população pobre atravessa a cidade para trabalhar, mas depois volta para dormir algumas horas no subúrbio.

Como hoje, o Estado dos anos 1980 chega primeiro com a repressão, com a polícia. Abaixo-assinados de moradores dos bairros pobres são ignorados, mas muitas manifestações dos favelados são tratadas com cacetetes e bala. Luz, asfalto, canalização dos córregos, ônibus. Parte da nossa conectada periferia do século XXI nem tem idéia do que é viver sem isso, mesmo sabendo que ainda existem regiões onde falta tudo.

Com pais e mães ocupados em manter a sobrevivência da família numa metrópole hostil, jovens negros, pobres, filhos de nordestinos e mineiros aprendem a viver na década de 80. Encontram diversão, amam, estudam, fazem amigos, mas também conhecem a violência da PM e o descaso do poder público, sentem como são discriminados por causa de sua cor.

O moleque que usa roupas e marcas citadas na música “Quanto vale o show” é o perfil do marginal imaginado pela elite, seu jeito, sua fala, seu corpo são alvos da PM e dos justiceiros. Sua origem, seu bairro, a ausência de “boa aparência” são fatores de rejeição nas entrevistas de emprego.

Uma parcela dos moradores das favelas começa a ver seus filhos sendo mortos, encontram corpos em lixões, esquinas, campinhos, escadarias. O ricos assistem tudo pela TV, ou ficam sabendo ao ouvir rádio em seus carros. Foi diluída a sensação de segurança que a presença da polícia e dos justiceiros passava para os favelados, apenas para os favelados. A elite está sossegada. A vida de muitos suburbanos fica em segundo plano na agenda dos governos que entram e saem.

Os heróis da elite têm estátuas e monumentos em cada canto da cidade. Santo Amaro, uma das regiões que mais crescem, tem Borba Gato, bandeirante, assassino e escravizador de índios, marcando o início de seu território, uma obra gigante inaugurada em 1963. Poucos sabem disso, tudo é precário nos extremos da cidade de São Paulo. Na norte, na sul, leste, oeste, os garotos estão crescendo. Samba e funk são a trilha da chamada função. A personalidade de cada um dos Racionais MCs começa a ser formada neste contexto. A fúria negra está nascendo.

Mano Brown e a Roda Viva – Parte 2

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O Bocada Forte revela parte do que rolou nos bastidores da entrevista do rapper ao Roda Viva e compara o fato ao movimento posterior de Mano Brown durante entrevista publicada na Rolling Stone, um dos primeiros passos para a mudança de sua relação com a mídia. Em 2010, uma das preocupações de Mano Brown parecia estar ligada ao processo de criação de um mercado no rap, algo para movimentar a e fazer girar a grana na cena.

Artigo publicado originalmente em 16 de fevereiro de 2010.

É a verdade mais pura, postura definitiva. A juventude negra agora tem voz ativa…
A gente quer ter voz ativa. No nosso destino mandar. Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá…

Não tenho boas lembranças da primeira vez que Mano Brown me falou: “É a hora! Tenho coisas pra falar. Querem me ouvir, vou falar”. Isso aconteceu semanas antes de sua participação no Roda Viva (em 2007), famoso programa de entrevistas da TV Cultura. Eu tinha ligado para o Brown para confirmar a informação e tranquilizar o Zé Maria, responsável pelo setor de pesquisa da emissora. Zé era a ponte entre o rapper e a direção do Roda Viva, os funcionários da TV queriam saber se o Brown iria mesmo ou se ele mudaria de ideia por algum motivo. Todos temiam a sua postura radical.

No dia 26 de setembro daquele ano, eu estava infiltrado no prédio desde às 19 horas. A expectativa era grande, pude presenciar algumas conversas, os jornalistas temiam até a saída repentina do rapper no meio do programa. Ninguém parecia disposto a colocá-lo contra parede. Prova disso foi a decisão de não mencionar os acontecimentos da Virada Cultural, na Praça da Sé, onde jovens entraram em confronto com a PM durante o show dos Racionais MCs, em Maio de 2007. Um cinegrafista veio me perguntar se o Brown ficaria nervoso se ele registrasse os bastidores do coquetel que antecederia o Roda Viva. Eu disse pro cara ficar sossegado e fazer o trampo dele na boa. O que muitos não sabiam: Mano Brown estava muito diferente.

Antes de revelar porque não tenho boas lembranças das frases que ele repetiu em sua recente entrevista ao jornalista André Caramante, na Rolling Stone (dezembro/2009), voltemos um pouco na linha do tempo.

O Ano é 2004, mês de agosto. Inicio meu trabalho de pesquisa para o primeiro DVD dos Racionais MCs. Aguardo Mano Brown no metrô Vila Madalena, juntos iremos ao centro de informações da TV Cultura, em algumas semanas conheceremos o Zé Maria.

Brown chega num Vectra verde (que só sei que é Vectra porque ele falou um dia), o som que saí dos falantes é disco music. “Eu curto a pegada desses sons, bem feitos, têm algo de magia nesse baixo que os caras tocam, é muito dançante. O Edy Rock não curte muito não.

Figura nacionalmente conhecida, Mano Brown é parado por fãs na rua que dá acesso ao edifício da TV Cultura. O ritual é o mesmo, os manos, as minas, todos citam o bairro de origem, algo que parece legitimar a admiração pelos Racionais. “Brown, sou da zona norte, mas nasci em Guaianazes, lá na leste”, afirma um. “Sou do Jardim Miriam, vocês já tocaram lá em 1993, diz outra.” Do local onde estacionou o carro até a portaria da emissora, um trajeto que duraria uns 2 minutos, leva quase vinte. Esse fato se repetiu durante o processo de pesquisa para o DVD.

Certa noite, quando voltávamos do trampo escutando Espaço Rap, Mano Brown desligou o rádio e colocou um CD no player. O motivo da mudança repentina: uma música dos Racionais rolava na 105 FM. Já tinha percebido antes, ele ficava meio sem jeito quando ouvia suas músicas numa das únicas emissoras que tocavam rap. No mesmo instante, o rapper começa a falar “Eu acho que só agora aprendi a fazer rap e a entender o rap, sempre falaram que eu era marrento. Eu abracei esse lado meu, mas anulei parte de mim. Por vaidade? Por inexperiência? Não sei. Hoje sei utilizar melhor as palavras, as rimas. A palavra é como uma navalha. Os efeitos provocados por uma navalha podem ser bem diferentes. O que pode provocar uma navalha no chão, na horizontal, deitada? Levante essa navalha, faça com que ela fique na vertical. Imaginou o estrago? Precisamos saber utilizar o que temos.

Roda Viva
Em 26 de setembro, Mano Brown esperava ser impiedosamente atacado. Deu “um migué”, se fez de desinformado para os entrevistadores, foi provocador. Mas ninguém ali estava pronto para questionar o rapper de forma contundente. O que vimos foi um Mano Brown tentando desconstruir o mito que o engessou durante anos, mas o tempo foi passando, o programa acabou e sua estratégia falhou. A repercussão não foi das melhores e isso me deixou desapontado. No final de 2009, a entrevista publicada na Rolling Stone mostrou o que Brown, sem sucesso, tentou fazer na TV Cultura. Com vinte anos de rap, o MC linha de frente inicia outra missão. O rap sempre falou em resgatar. Agora o canto falado precisa ser resgatado. O preço é alto. Brown fez mais um dos seus movimentos. Outras surpresas virão? O rapper será mais compreendido do que atacado? Respondo com a filosofia de terreiro – Tempo disse. Tempo dirá.