img_pngO ESPETÁCULO DA DISS | Uma reflexão breve e necessária.

Por Arthur Moura*

A diss, canção de insatisfação, é uma faixa exclusiva para responder ou atacar principalmente MCs, grupos ou bancas. Poderíamos pensar que este seria um bom terreno para se “lavar a roupa suja” no seio da cultura hip hop, ou seja, mandar o papo reto com o objetivo de resolver questões fundamentalmente políticas ou ideológicas ou que pelo menos se colocasse favorável a isso agregando ao invés de separar. Dessa forma expandiriam suas consciências a um nível adiante, emancipado, transformado, fortalecendo a coletividade, claro se isso tudo for pensado dentro de um contexto social onde o rap insere-se como linguagem e uma postura anticordial com relação aos esforços da classe dominante em neutralizar as expressões culturais da favela e dos negros. Rafael Lopes de Sousa em seu livro “A anticordialidade da República dos Manos” trata dessa questão na cidade de São Paulo. Este esforço reforçaria ainda mais as bases da cultura assegurando a sua sobrevivência e avanço e sua busca por independência. No entanto, a diss não funciona como crítica ou auto-crítica, mas como mecanismo para se criar e proliferar polêmicas ocas ou simplesmente alimentá-las através de ataques e auto-afirmação. Não produz reflexão nem debate. Pelo contrário. Encerra-se na lógica individual espetaculosa afirmando uma suposta infalibilidade do MC.

O espetáculo transforma tudo isso (a música, os grupos e MCs) em mercadoria, neste caso muito seguramente pautado na imagem dos ídolos do rap. A transformação do possível debate crítico em espetáculo gera uma desqualificação geral dos discursos e sobretudo da prática daqueles que aderem a este sistema. Este é na verdade um importante momento para se angariar mais público, por sua vez adestrado a partir da lógica de consumo a consumir estereótipos e preconceitos. A diss me faz lembrar as batalhas de sangue, verdadeiro ringue onde quem mais for humilhado perde a batalha. Em minhas incursões nas rodas de rima – principalmente quando estava rodando o documentário “O Som do Tempo” (2017) -, questionei diversos organizadores das rodas sobre o caráter das batalhas de sangue. Os organizadores colocam as batalhas de sangue como elemento imprescindível sendo assim muito mais difícil favorecer uma mudança nas mentalidades.

Importantes MCs passaram pelas batalhas. No Rio de Janeiro, Batalha do Real, Zoeira Hip Hop, Liga dos MCs, Centro Interativo de Circo (o conhecido CIC que funcionou na fundição progresso e que terminou com o incêndio criminoso) e mais recentemente as rodas de rima. Todos esses movimentos foram e são importantes para a cultura hip hop do Rio de Janeiro, dão combustível para o rap continuar seguindo ainda que em permanentemente contradição.

img_pngNo entanto, esse caminho, visto por alguns de forma unilateral, ao passo que expandiu e conquistou o mercado também contribuiu para a regressão da audição no rap anulando o espírito de luta em detrimento do espetáculo que por sua vez reflete apenas a sua própria imagem num laudatório infinito. Esse laudatório é o que representa a diss. Recentemente me dispus a ouvir a treta mais recente envolvendo MCs/grupos do sudeste e nordeste do país. É necessário pensar aqui que os MCs da velha escola também se empenharam em produzir este tipo de espetáculo-musical-midiático, como, entre outros, foi o caso de Marechal e Cabal. Na época quem saiu “ganhando” foi Marechal, pois deu uma “lição” no playboy de São Paulo. Esse mecanismo deu muito mais ibope e como conseqüência foi muito maior que um disco-promessa. Marechal ganhou ainda mais respeito e notoriedade na cena.

Percebemos com isso que as coisas estão interligadas. A treta recente entre SHOMON, BACO EXU DO BLUES e DIOMEDES CHINASKI e COSTA GOLD apenas confirma a regra. Em primeiro lugar são letras misóginas, extremamente agressivas com relação às mulheres. Em nenhum dos casos deixa-se de acusar o outro de ser uma puta ou agir como tal. A mulher continua sendo a puta, a traíra e em última instância aquela que deve ser salva de sua condição. O ódio também se manifesta contra as travestis, enfim, LGBTs, ou simplesmente desrespeitam os que são soropositivo nas letras. São letras abusivas e vulgares, enfim, é a miséria da miséria manifestando-se no rap. Em segundo lugar o individualismo egocêntrico da saturação do eu. Enfim, o espetáculo é auto-propaganda dos MCs e grupos-mercadoria.

É preciso pensar os limites desse tipo de ação e extrair delas o seu real objetivo ao longo da história do rap no Brasil e também fora dele já que há muitos casos envolvendo verdadeiras tragédias com relação às tretas entre grupos e MCs rivais. É como se o hip hop e o rap por conseguinte tivesse perdido parte fundamental de sua essência qual seja o fortalecimento dos oprimidos através da sua organização cultural, expressiva e contundente contra os desígnios do capital. Esse é um dos resultados da mercantilização da cultura, do seu esvaziamento político e ideológico.

img3*Arthur Moura é diretor de cinema
na 202 Filmes e, dentre outros
trabalhos, produziu o
documentário sobre o rap no
Rio de Janeiro “O Som do Tempo”
.

Publicado por Portal Bocada Forte

Pioneiro no Brasil, fundado em 1999, o BF tem como foco o original hip hop brasileiro e internacional, com ênfase na cena alternativa.

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