Seguindo o conselho dos sábios, KAMAU pede permissão para voltar ao mundo que conhece bem. Referência no rap brasileiro, o MC voltou a encarnar o beatmaker e produtor em seu mais recente trabalho, o EP “Licença Poética (Experimentos Pessoais)”. O trabalho traz sete faixas que tratam das permanências e da existência onipresente do novo. É deste ponto – entre as raízes da cultura hip hop, sua poesia e as pressões dos dias de hoje – que Kamau manda seus versos.

Ao assumir a produção, Kamau mostra o melhor de si em instrumentais jazzy que dão suporte ao seu rap. O recado do MC é esse: viver, aprender, escolher em meio aos conflitos como vai passar o tempo, amadurecer. Em entrevista exclusiva ao BF, Kamau fala a respeito da tradição da cultura de rua, da apropriação cultural no rap e, é óbvio, do EP Licença Poética (Experimentos Pessoais), o melhor trabalho de sua carreira.

Bocada Forte: Na música “Com licença”, parece que você mescla o processo de composição com sua vivência e seus manuais de conduta dentro e fora do rap. Com tantos anos no rap, o significado de saber chegar e saber sair ainda continua o mesmo? Qual sua meta em meio a tantas mudanças na cena urbana e musical?
Kamau:
Saber chegar e saber sair é aprendizado pra vida. Seja numa sala de aula, num jogo de rua ou num ambiente familiar, o respeito tem tem que entrar e sair com a pessoa. E como minha rima é minha vida, nada mais correto que manter essa conduta que aprendi em casa. Minha meta é abrir mais portas e circular por mais lugares, podendo circular livremente por onde já passei também. Minha música é um pedaço de mim onde for.

Bocada Forte: Continuando nessa mistura de ideias e estéticas, você é uma referência quando se trata de unir em seu rap o espírito dos outros elementos, principalmente a cultura DJ. Fale um pouco sobre isso. É uma missão esse lance de manter a tradição?
Kamau: Acho importante que minha essência não se perca. Mas que eu sempre possa aprender e manter essa evolução em uma constante. Então nunca largo o que acredito pra “abraçar” uma ideia nova pra parecer mais “antenado”. Sempre analiso e agrego o que me apetece. Não posso perder o que me ensinaram quando cheguei e nem fechar a mente pro que acontece ou está prestes a acontecer. Minha tradição pessoal é evoluir sempre que possível. Mas manter os alicerces firmes.

Bocada Forte: Neste trabalho, você assume as produções. Qual a principal razão desta escolha? Jazz e soul continuam guiando seus instrumentais?
Kamau: A razão é simples: necessidade. Tenho muitos amigos que fazem batidas e produzem. Mas cada um tem seu ritmo e método. E muitas vezes nossas ideias se desencontravam. Então resolvi reaprender e executar ideias que eu já tinha pra renovar os ares na minha mente e minha arte. E nesse processo eu me entendi melhor e talvez converse melhor com meu ‘entorno’ agora. Música brasileira, jazz e soul sempre serão fonte. Mas nem sempre as únicas. Há poucos samples nesse EP aliás. A maioria das melodias vieram da mente. Talvez seja um novo caminho pra mim.

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Foto: Vinicius Branca.

Bocada Forte: Qual faixa do EP terá seu primeiro videoclipe?
Kamau: Fazendo o disco, eu imaginei um clipe pra cada som. Mas ainda não fechei com ninguém pra fazê-los.

Bocada Forte: Voltando em falar em tradição e modernidade, você é um dos MCs que também valorizam a cultura do sample, mas sempre fez parcerias com músicos. Esse lance faz parte da sua formação musical?
Kamau: Minha formação musical veio toda do rap. O rap e a arte de samplear me ensinaram a ouvir outros estilos musicais de outra forma pra entender o que era feito e agregar ao que eu queria fazer. Tenho cada vez mais agregado músicos ao que faço pra enriquecer a música em si e ter mais liberdade em torno dos temas musicais. Mas quero aprender mais pra enriquecer esse diálogo.

Bocada Forte: Em tempos de rapidez no tráfego de informações, sinto que os artistas sofrem uma enorme pressão para manterem seus trabalhos relevantes e ainda provarem que estão trampando sério. Você percebe isso, sente essa pressão? Como lida com essa parada?
Kamau: Essa pressão existe pra todos, desde os mais novos – que precisam mostrar quem são e a seriedade do que dizem e fazem –  até os que estão há um bom tempo com um nome teoricamente já estabelecido. Eu me sinto entre esses dois universos, mas trilhando sempre novos caminhos. Faço música pra durar, ir além do momento. Então penso mais em trabalhar o que já tenho do que criar sem critério num ritmo frenético que não é o meu. Já não preciso provar que estou aqui. Então a meta é sempre ir além.

Bocada Forte: Seu EP fala desse confronto entre permanências e raps descartáveis. Como é seguir silencioso em meio a tanta gente gritando na cena?
Kamau: Natural pra mim. Gritar entre muitos outros aumenta o barulho mas não te faz ser ouvido. Saber como e quando falar sempre foi meu método, pois poucos tem pulmão pra gritar o tempo todo. O rap conquistou espaços, superou barreiras, ficou mais popular. Isso também trouxe uma diversidade nos discursos e interpretações.

OUÇA O EP “LICENÇA POÉTICA (EXPERIMENTOS PESSOAIS)”:

Bocada Forte: Qual a sua opinião sobre a parada da apropriação cultural, essa ideia do artista querer a arte negra, mas dispensar os conflitos negros que estão no DNA do rap?
Kamau: O rap sempre foi democrático, por mais seccionado que parecesse. Parece muito fácil pra muitos fazer rap. É o que acontece com softwares que facilitam tirar e editar fotos no celular ou gravar músicas em casa. Mas viver o rap é muito diferente. Não sou contra quem faz rap diferente do meu ou do que eu acredito. Mas o rap é minha casa. Então respeite minha casa e não venha bagunçar o que não é seu. Senão esse não é e nunca será seu lugar. De nada adianta ter um amigo preto ou um preto no seu grupo se você não respeita os outros iguais a ele na aparência que trabalham em outros ramos da sociedade. Meu mano Parteum disse muito bem num verso: “Caráter não tem cor, mas minha rima é pelo canto dos escravos nos navios”. E eu luto do meu jeito.

Bocada Forte: Muitos repetem o refrão do Sabotage: “rap é compromisso”. Pra você, rap é compromisso com o que, com quem?
Kamau: Eu tenho um compromisso com meu rap. Rap, pra mim, é compromisso com a verdade de quem o escreve, interpreta, toca ou escuta. Mais importante ainda é o refrão do Sabotage que diz: “Respeito é pra quem tem”. Respeitar é meu compromisso.

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Publicado por Portal Bocada Forte

Pioneiro no Brasil, fundado em 1999, o BF tem como foco o original hip hop brasileiro e internacional, com ênfase na cena alternativa.

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