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Por: Marcela de Palmares. Edição de imagem: Vinicius Martins. Parceria com o site Alma Preta.

O novo filme do NETFLIX “Beasts of No Nation” tem se tornado tema recorrente no mundo cinematográfico. A trama narra a história de uma guerra em um país não identificado na África (oeste africano). Apesar de oferecer uma visão mais ampla desse processo, não colocando exatamente o lugar em que acontece a história, sugere-se a partir de vários detalhes que a trama se passa na Nigéria. O filme tem sido cotado para prêmios e recebido muitos elogios da crítica. Baseado no livro “Feras de Lugar Nenhum” (tradução em português), a produção tenta relatar uma realidade contraditória em que meninos, ou meninos-soldados, são obrigados a amadurecer devido a guerra dos homens.

O autor do livro, Uzodinma Iweala, é um jovem afro-americano de família Nigeriana, filho de uma importante política do país, Ngozi Okonjo-Iweala. Graduado em Harvard, Uzodinma já foi nomeado um dos 20 melhores romancistas norte-americanos. A inspiração para escrever sobre crianças-soldados se deu depois do conhecimento do conflito de Serra Leoa no ensino médio. Anos depois, como presidente da Sociedade de Alunos Africanos da Universidade de Harvard, o jovem conheceu uma ex criança-soldado de Uganda. Depois de ler outras biografias de crianças-soldados e estudar relatórios da Anistia Internacional, ONU e entrevistar pessoas que passaram pela guerra civil nigeriana da década de 60, decidiu escrever o romance Beasts of No Nation.

Diversos são os olhares que podemos ter a partir desse bem produzido filme, uma das poucas superproduções negras, com a história e os atores também negros. Eu na verdade gostaria de me aprofundar em pequenos detalhes que podem acabar passando despercebidos. Farei uma comparação a outro grande artista negro, o músico Fela Kuti, que tem um álbum com o mesmo nome do livro/filme. Trato sobre o papel ideológico do filme no momento em que vivemos.

Quando me dei conta que esse livro e agora filme tem o mesmo nome de um dos álbuns de Fela Kuti, comecei a refletir sobre os diferentes papéis dessas duas expressões artísticas sobre a África.

Fela Kuti tem uma história bem diferente do jovem Uzodinma Iweala. O músico se tornou um importante líder político nigeriano na luta anti-colonial por meio de suas músicas, repletas de letras políticas de contestação. Por lutar e enfrentar as injustiças coloniais, Fela foi fortemente perseguido e preso algumas vezes.

A coisa em comum, a Nigéria
Partindo da leitura de que em vários momentos há “pistas” no filme/livro de que a trama se passa na Nigéria, é possível aproximar as músicas de Fela e a produção cinematográfica.

No filme é possível perceber que os soldados que protegem a vila em que a família do protagonista Agu (Abraham Attah) mora são nigerianos. Esses soldados cumprem um papel protetor, pois são responsáveis por garantir a paz naquela pequena vila até que o governo muda de posição política (ai não fica claro de que lado esses mesmos soldados se colocam). Já Fela conta uma história diferente. O músico organizou um álbum que fez um sucesso esmagador, em que é possível ouvir a música Zombie, letra que também trata sobres os soldados nigerianos, os comparando com zumbis, uma crítica sobre seus métodos de ação que gerou umas de suas perseguições políticas.

A história do Beasts of No Nation original
Foi a primeira musica que Fela escreveu após ser liberado da cadeia, onde pagou uma pena de dois anos por uma falsa acusação. Ao sair da prisão, todos estavam querendo saber qual seria a próxima produção de Fela. A pergunta era: sobre o que ele iria cantar? O artista respondeu então a altura toda e qualquer expectativa.

A música é uma forte critica politica ao governo Nigeriano. Quando sai da sua prisão, Fela logo questiona esse “mundo louco”: que permite a enorme brutalidade policial, a opressão do exercito, os tribunais sem justiça, além dos magistrados que deveriam cumprir a lei, mas a ignoram para agradar aos interesses especiais. A composição crítica também o apartheid, assim como o imperialismo, suas guerras e o papel da ONU, mais uma ferramenta para manter a dominação das grandes potências econômicas.

As Nações Unidas e seu papel em Fela e Uzodinma Iweala
No final do filme “Beasts of No Nation”, Agu e outras crianças são salvas da guerra pelas tropas da ONU. Com os adultos, não é possível saber o que acontece. Tanto no livro como no filme, as Nações Unidas e suas missões cumprem um papel pacificador e civilizador de libertação da opressão desse povo. Um detalhe que parece inofensivo, mas que na verdade fortalece uma visão positiva da intervenção militar na África.

Totalmente diferente é a visão de Fela, que em seu álbum “Beasts of No Nation” deixa bem claro qual a sua visão sobre o papel das Nações Unidas, uma organização feita para os países opressores garantirem a exploração dos povos.

Essa diferença não é um mero detalhe, ainda mais quando se pensa na situação das “missões de paz”. Das 16 existentes e comandadas pela ONU, sete estão na África (Saara, Líbia, República Democrática do Congo, Sudão, Sudão do Sul, Darfur, República Centro-Africana, Mali e Costa do Marfim). Isso sem falar no Haiti, país negro que protagonizou uma revolução escrava e que até hoje sofre brutais consequências como os doze anos de intervenção militar. No total, em 2014 eram 72.000 soldados no continente Africano.

Para nós brasileiros, não só pela composição de nossa população, mas pelo papel que o exercito tem cumprido, a questão se torna ainda mais importante. Dessas sete missões, o Brasil participa de cinco.

Tantas coisas em comum, uma importante diferença
Apesar de tantas coisas em comum entre os dois brilhantes talentos negros, uma pequena diferença se torna extremamente relevante, principalmente para a luta contra a exploração da África e do racismo em caráter mundial.

Fiquei impressionada ao fazer essa comparação, pois ela evidencia muito sobre o momento em que vivemos. Alguns negros conseguiram ascender e alcançar lugares de destaque. Esses, assim como Fela e Uzodinma Iweala, são referências para negros e negras no mundo inteiro. É verdade que ambos os artistas têm importantes qualidades e mostram, sim, como com oportunidades qualquer negro pode se tornar o que quiser e como quiser.

Para que todos os negros possam ser capazes de ser e fazer o que quiserem, para que possamos viver em uma sociedade sem racismo, para que possamos derrotar a exploração imperialista da África, as tropas da ONU que matam, estupram e cometem um número absurdo de atrocidades precisam de mais gênios como Fela para enfim recuarem. Precisamos de mais homens negros que se proponham a encarar o mundo pela liberdade.

Hoje, negros como Uzodinma Iweala podem cumprir a missão de mostrar aos negros que nosso papel não é necessariamente no trabalho precário e na pobreza. Mas ao mesmo tempo sua visão imobiliza e desvia a luta. Não se trata de uma questão individual para ascensão social ou construção de grandes dirigentes e famosos. A luta é pela autonomia dos negros e pelo fim do racismo internacional.

Uma vez uma querida amiga disse uma coisa da qual eu tenho muito acordo: um negro que ascende sozinho continua escravo desse mundo racista.

Hoje acredito no Beats of No Nation de Fela Kuti, na visão do negro revolucionário que luta pela emancipação. Ele organizou e protagonizou uma importante luta contra o imperialismo e a opressão de seu povo, usou de sua arte para espalhar uma visão de luta. Fela acreditava no enfrentamento como ferramenta de emancipação e de autonomia de seu povo. Sua musica, fama e sua visão de mundo são referências para muitos negros que desejam combater o racismo e a exploração.

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Publicado por Portal Bocada Forte

Pioneiro no Brasil, fundado em 1999, o BF tem como foco o original hip hop brasileiro e internacional, com ênfase na cena alternativa.

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