Z’África Brasil, o ritual do puro hip hop

IMG
MC Gaspar, DJ Tano e os MCs Funk Buia e Pitchô

Com mais de 20 anos na cena, o rap do grupo Z’ÁFRICA BRASIL é politizado e marcante. O “Z”, do nome Z’África, inspirado no eterno guerreiro Zumbi dos Palmares, assinala a postura do grupo. Criado nos anos 90, o Z’África tem ao menos cinco trabalhos lançados, todos com a marca da rima e flow de alto nível de um de seus líderes, Gaspar. Unidos não somente pela música, mas também pelos trabalhos sociais que desenvolvem na capital paulista, Gaspar, Funk Buia, Pitchô e DJ Tano carregam a bandeira legítima da cultura hip hop, fortemente ligada aos princípios e valores da Zulu Nation. Abaixo, você confere um bate-papo do BF com GASPAR, que fala sobre a caminhada do grupo até o momento, a cena atual da música rap brasileira e projetos.

Bocada Forte: O Z’África Brasil tem uma longa trajetória no hip hop brasileiro. Como vocês encaram os tempos atuais da nossa cultura em relação ao passado? Houve evolução, tanto no cenário social como no cenário musical?

Gaspar: Salve, Família! O Z’África Brasil está na estrada há 20 anos e não pára. Trabalhamos com a música e os elementos da cultura hip hop e cultura periférica, partindo das tradições africanas e tendo compreensão de que existem muitas Áfricas, muitas realidades latino-americanas e muitos Brasis. A cultura hip hop está enraizada em todo o Brasil e no planeta. Estamos conectados com grupos de vários lugares do mundo. A gente leva isso como estilo de vida e cada tempo tem sua contribuição para evolução da nossa cultura. Vemos no Brasil o hip hop, a música rap e seus outros estilos musicais conquistarem cada vez mais força, assim como o ragga, o reggae, a embolada, o repente, o coco. Pra nóis, tudo isso é hip hop. É canto falado, é tradição milenar que temos em toda América e neste pedaço de África, que é o Brasil… O mundo é nosso. A nossa luta é atemporal e vai além dos tempos. O tempo quem faz é nóis, porém o hip hop sempre acompanha as mudanças do mundo, a evolução tecnológica. Então pra gente, que é um grupo que surgiu em 1995, atravessamos e presenciamos essa mudança do analógico para o digital e os sintetizadores, as baterias eletrônicas, as MPCs, os computers, com os programas de produção que chegaram com mais fácil acesso e que ajudou muito nas produções dos anos 2000 para cá. Tudo isso exigiu mais profissionalismo e espetáculo de alto nível, falando também na evolução dos elementos e das expressões artísticas que constituem a nossa cultura de rua, seja na dança, na música ou nas artes plásticas, especialmente a arte do graffiti.

IMG2Houve evolução sim no aspecto social, cultural, educacional e político, ações que o movimento hip hop continua se organizando. Hoje nossos projetos sociais continuam a todo vapor. Temos o Diko, lá com o Espaço Comunidade, na favela do Monte Azul (zona sul de SP). Tem o João Nascimento, lá com o Afrobase, no Rio Pequeno (zona oeste de SP). O Círculo Palmarino, com o Juninho, lá no Santo Eduardo (SP). O Vulto, lá com o Zumaluma, no bairro de Santa Tereza, em Embu das Artes. Agora a grande mídia está abrindo mais espaço para música rap e para a cultura hip hop. Mesmo com muitas distorções e contradições, têm muitos artistas que estão mais engajados com o lado do entretenimento, o lado da indústria cultural severa que existe. Mas o hip hop, principalmente a música rap, sempre rompeu barreiras na grande indústria musical e sempre está envolvido em grande negócios. Isso não é novidade para ninguém. Vejo muita coisa ruim na música rap. Muita ideia sem sentido e longe de algumas questões importantes de transformação. Mas cada um faz da sua arte o que quiser, sem essa de moralismo e segregação. Cada um é responsável pelos seus atos. Mas já não é de hoje que existe esta apropriação cultural/musical de massa que vem dos guetos do Brasil e do mundo, sendo pasteurizada por este mercado que determina temas e harmonias que vendem ou não… Música, pra mim, é acima de tudo arte e transformação, mas também pode ser entretenimento e diversão. O importante é fazer com Alma e tocar no coração das pessoas de alguma forma. A evolução tem que partir de cada um. Acreditamos que todas as ações são importantes para que possamos estar em todos os cantos da sociedade e que nossa música e nossa cultura possa alcançar cada vez mais reconhecimento e respeito. Tem a velha escola, a nova escola… Hip hop é atemporal e não se perde ao tempo. Nóis somos a escola. Z’África Brasil é hiphopologia, formado em ruologia, na universidade da vida, mocambo que virou quilombo, viela que virou avenida…

Bocada Forte: Com o advento da Internet, muita coisa mudou no mundo da música. Se antigamente os apaixonados pela música rap tinham de pesquisar arduamente atrás de conhecimento e informação, hoje a coisa é muito mais instantânea. No entanto, percebemos que a juventude atual, apesar das facilidades, não tem a mesma carga de engajamento na cultura hip hop. Como você encara essa realidade?

IMG3Gaspar: Verdade, é uma realidade. Mas a Internet, a grande rede, é muito importante para divulgar nosso trabalho. A primeira Internet foi o tambor. Temos que usar esta ferramenta poderosa para alcançarmos novos públicos, ficar mais perto de quem gosta realmente do seu trabalho, investir em comunicação e na imagem também. O hip hop é muito amplo e exige conhecimento para resistir, para não ser engolido pela a grande indústria musical. Para o Z’África, antes de tudo, hip hop é estilo de vida. Está presente em todos os dias. Hip hop é atitude, é nossa forma de ser, nossa filosofia, nossa espiritualidade, ancestralidade, musicalidade… Isso nos mantêm firmes,  sem parar, na estrada… Hip hop é um estado de ser e os Universos que a nossa cultura nos propõem são gigantes e cada um se identifica da maneira que quiser. Pra nóis, tudo é hip hop e está interligado com capoeira, repente, literatura de cordel, dança afro… Por isso que o King Afrika Bambaataa, King Nino Brown, Nelson Triunfo, Back Spin Crew, Thaide, Z’África Brasil e muitos outros membros da Zulu Nation, que trabalham o original hip hop no Brasil, trouxeram os seus cinco elementos. Os quatro tradicionais são: os MCs, DJs, Breakin e os Grafiteiros. O quinto é o conhecimento. Tudo que envolve a nossa cultura em todas as suas esferas e a juventude de agora tem tudo aí pronto para eles. Isso porque muitos ‘griots’ (pronuncia-se griôs) do hip hop abriram caminhos para que esta nova geração pudesse estar desfrutando destes conhecimentos ancestrais. Por isso, alerto: entenda sua cultura e não vá só pela a emoção… Não basta vestir a fantasia, o uniforme. Só a facilidade da informação não quer dizer que é conhecimento, respeito ancestral aos que vieram antes. Existe um legado transmitido a várias gerações a partir dos pioneiros. Por isso, a cultura hip hop é uma grande família. E estamos atentos… Cada um faz o engajamento que quiser, do seu jeito. Um hiphopper transforma sua realidade, o seu lugar, pois ele é o fruto de onde veio.

O hip hop é, para todos, sem segregação; também é diversão, é questionamento crítico. Hip hop é protesto e é amor também…Quem vive nossa cultura sabe que sempre há tempo de buscar conhecimento. Hoje as coisas são muito instantâneas e fica mais difícil de saber o que é bom ou ruim. Muitas vezes, devido à falta de conhecimento, muitos acabam distorcendo a nossa arte. Mas cada DJ ou MC é responsável pelo que faz. Cabe a cada um saber usufruir destes conhecimentos de forma positiva. Esses são os princípios do hip hop: transformando a vida das pessoas para o lado bom, sem prejudicar ninguém. Hip hop agrega. Hip hop não segrega. Cada um no seu tempo, na sua evolução em prol da nossa cultura. Se você não sabe de onde veio, não saberá onde ir. Pra gente, tudo em nosso trabalho é um grande laboratório de pesquisa. Precisamos estudar sempre para evoluirmos sempre, mas sem abandonar e esquecer nossas origens e raízes.

Bocada Forte: Sabemos que o grupo tem atividades que vão muito além da música. Qual o foco do Z’África Brasil hoje?

Gaspar: Z’Africa Movement… Movimento Z’África… Movimentar-se para se alimentar… Acabamos de lançar o álbum ‘Ritual 1 – A vida segundo os elementos do Hip Hop’, que é o primeiro disco de uma trilogia, e as 13 músicas ineditas podem ser baixadas gratuitamente no novo site www.zafricabrasil.com.br. O Funk Buia lançou, em 2013, seu trabalho solo intitulado: Verdadeiro tem que ser. Eu lancei este ano também, com o João Nascimento, o projeto Rapsicordélico – Ritmo e poesia pisicodélica em cordel. Somos árvores florescendo na floresta, que é o Z’África Brasil. Também estamos em turnê, comemorando os 20 anos de carreira do Z’África Brasil. Conciliamos esse trabalho com nossas oficinas de hip hop nos projetos Afrobase; Rádio Tambor; Guacury (SP). Oficina de MC e DJ também no Fábrica de Cultura, no Capão Redondo/São Luiz (zona sul de SP), além de fortalecer os projetos do Zumaluma, Círculo Palmarino, Espaço Comunidade, Centro Cultural DaVila, todos na capital paulista. Participamos também do espetáculo ‘Terreiro Urbano’, do grupo Treme Terra. Lancei também este ano o livro: O Brasil é um Quilombo. Temos agora um espaço comum, a Casa Z’África, onde fazemos nossas produções e nos preparamos para sair para estrada. No momento, estamos fazendo também a gravação do álbum ‘Ritual 2’, além dos shows pelo Brasil.

Bocada Forte: Fale-nos do último trabalho do grupo, “Ritual I – A Vida Segundo os Elementos do Hip Hop” (ouça abaixo). Como se deu o processo criativo?

IMGGaspar: Pode crê. Esse novo trabalho foi lançado pelo selo Elemental e representa bem essas duas décadas da nossa trajetória. A produção é do Pitchô, um dos MCs e fundadores do Z’África, e da banda Z’Africanoz. A autoria das letras eu divido com o MC Funk Buia. Trata-se da primeira produção musical feita por nóis, sem sampler. A grande maioria das 13 faixas inéditas foram tocadas. A única exceção é a música ‘O Professor Está de Volta’, que tem um sampler feito por Lou Piensa (Nomadic Massive) e muitos scratchs do DJ Tano. O CD faz uma homenagem aos mestres do hip hop, com destaque para o norte-americano MC KRS One. Para nós do Z’África, KRS One, autor do livro . É um ídolo, um exemplo e uma referência. Em 2008, ele recebeu o prêmio Lifetime Achievement Award, por todo o seu trabalho e iniciativas como Stop the Violence Movement. MC KRS One inspirou ‘O Professor Está de Volta’, quarta faixa do disco. Esse clima de homenagem também invadiu a faixa ‘O Rap é Grande’, carro-chefe do álbum, inspirado na geração do rap dos anos 90 do século passado. Faz uma homenagem a todos os rappers, DJs e MCs, que mantém a cultura hip hop viva, e a todos os B-Boys, B-Girls, Poppings, lockings e original funk, além dos grafiteiros. Destaca os DJs que influenciaram os MCs do Z’África, quando ainda eram adolescentes, como KL Jay (Racionais), DJ Hum, Grand Master Ney, Nice e Grand Master Duda. E não se esqueceram daqueles que fundaram o Z’África e fizeram parte do time na sua origem, como o DJ Zulu Z’África – perito em James Brown, Kurts – e DJ Meio Kilo, O álbum tem a participação de Fernandinho Beat Box nas faixas ‘A vida segundo os elementos do Hip hop’ e ‘O Professor está de volta’. Na música ‘Família’ tem a participação de Zulu Soul Jah. Já nas faixas ‘Temos que lutar’ e ‘Sem dizimo do frei’ participou Karina Santo e Roberta Oliveira. Na faixa ‘Pra onde vamos?’, Leandro Kintê participa e na faixa ‘Rústico’ a convidada foi Amanda Negra Sim. O processo criativo foi muito ligado ao trabalho que a gente desenvolve com a banda Z’Africanoz, que são nossos parceiros pelo mundão afora. É um ritual musical, é o ritual da vida, de manter-se firme nos objetivos. ‘Ritual 1’ é para bater na alma e transformar.

Bocada Forte: O Z’África Brasil é conhecido por seus trabalhos no exterior, com grupos e artistas da França, Itália e outros países. Existe a previsão de lançamento de um novo trabalho nesse sentido?

Gaspar: O Z’África fez seu primeiro disco, uma coletânea com grupos italianos, e foi uma das primeiras experiências em estúdio que resultou no CD Conceitos de Rua‘. Outro trabalho foi em Paris, na França, com o grupo Assassin, com produção de Niroshima e Rockin Squat, que resultou no EP ‘Verdade e Traumatismo‘.

Atualmente estamos trabalhando num álbum ou coletânea, tipo mixtape. Não sabemos precisar ainda, mas já sabemos que teremos parcerias, com amigos de vários países. É só aguardar para conferir.

Publicado por Noise D

Natural de Porto Alegre/RS, Noise D é colaborador do Bocada Forte desde 2001. Designer, Editor e Social Media do BF, tem formação em Comunicação Social.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *